terça-feira, 12 de maio de 2009

O LIVRO DE PERPÉTUA ROSA - I


A cidade é feia e as ruas vazias de cor. Perpétua Rosa procura alguma coisa familiar, pode ser um nome, um gesto, um cheiro ou uma esquina, mas passaram tantos anos que a esperança de poder rever-se naquela terra sua de corpo e de alma se escoa para a sombra da cidade gasta. É a primeira vez que regressa e há um terramoto dentro dela, o corpo treme-lhe todo, a boca sabe-lhe a sal. Só não sabe se pela maresia do ar ou se pelo passado que lhe corre dos olhos molhados.
Viajou no tempo até ao dia em que o conheceu. Dobrava a esquina, apressada e de gargalhada solta. A vida era fácil, bonita como um dia de sol, intensa como uma maré viva, eterna como uma noite de Verão. A poucos metros de casa, ele estava encostado à ombreira de uma porta, cigarro na boca, chapéu na cabeça, olhar malandro. Teriam bastado apenas meia dúzia de passos e ela entraria como sempre na pacatez da sua casa, livre de todos os perigos. Mas o mundo parou, e o pó do caminho de casa ficou suspenso para sempre porque presente e futuro se encontraram naquele dia num corpo de mulher e num cheiro de homem. Bastou abrir a boca e deixar sair a voz, um tamborilar de palavras ritmadas e sabidas, para a prender numa cadeia se sentires de onde ela nunca mais soube sair.
Perpétua Rosa foi com ele para longe, num comboio que a levou para lá da montanha, onde só quem a esperava era gente de alma gasta. De súbito a felicidade dos primeiros dias foi-se como um papel mal ensaiado, o pano caiu, e ela só deu pelo teatro quando se viu pela primeira vez no palco para onde ele a mandou, a esquina suja onde passariam tantas horas putas da sua vida.
Não se pode fugir à tristeza quando ela se crava no fundo do peito, nem voltar a ser feliz quando à volta nada cheira a casa. Perpétua Rosa depressa aprendeu estas duas lições, por isso não lutou contra elas e deixou-se ficar, a ver-se ao longe, escrevendo todos os dias mais uma linha no seu manual de sobrevivência. Valiam-lhe as migalhas que ele lhe dava, poucos minutos por dia a brincar ao amor e a fazer de conta que as palavras ditas com aquela voz que continuava a atordoá-la eram verdadeiras.
Até que chegou o dia em que ele, tão tirano de coração, se tornou tão frágil de corpo que até ela se comoveu. A doença veio depressa, instalou-se para ficar, começou a comeu-lhe a carne e ameaçava todos os dias começar a roer-lhe os ossos. Perpétua Rosa interpretou-a como um sinal, libertador e conveniente, e decidiu partir. Numa noite quente arrumou as suas coisas na mesma mala com que há 20 tinha fugido acreditando na felicidade, e espantou-se por esta ficar quase vazia de coisas. Encheu-a então de desgostos e assim, tão pesada mas cheia de coisa nenhuma, saiu sem olhar para trás e caminhou um passo decidido até à estação. Dirigiu-se à bilheteira e pediu um bilhete, só de ida, apostada que estava em reencontra-se. Havia pouco movimento àquela hora e ela sentou-se. Não o devia ter feito, porque adormeceu e dentro dos seus sonhos ele começou a falar-lhe com aquela voz e apareceu, vinda não se sabe se do céu se do inferno, uma ternura avassaladora e inesperada, tão intensa como o apito do comboio que partiu sem ela.
Perpétua Rosa ficou ao seu lado até não sobrar dele mais do que uns olhos fundos e uma voz estonteante.
Quando por fim se sentiu livre, voltou e reparou que a sua cidade é feia e as ruas vazias de cor. Perpétua Rosa procura alguma coisa familiar, pode ser um nome, um gesto, um cheiro ou uma esquina, mas passaram tantos anos que a esperança de poder rever-se naquela terra sua de corpo e de alma se escoa para a sombra da cidade gasta…

moon

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

MIA

fotografia: VV, Santiago de Cuba, 2008

Mia pensa que vida é aquela.
As ruas da cidade são calçadas de pedra e o riso das crianças povoado de desejos.
Mia pensa que vida é aquela.
O dia amanhece quente e a terra geme não se sabe se de calor ou de desespero.
Mia pensa que vida é aquela.
Nas gargantas da gente as palavras estão presas e na vontade de todos calam-se os gritos.
Mia pensa que vida é aquela.
É hora de almoçar, de jantar e de cear e a mesa está posta de esperança que amanhã esteja posta para comer.
Mia pensa que vida é aquela.
As crianças passam para a escola onde a lição é de aprender que vivem no melhor lugar do mundo, longe do abuso dos pratos cheios e dos pés calçados do novo mundo.
Mia pensa que vida é aquela.
As estrangeiras passam e cheiram a felicidade a perfume e a dinheiro, deixam no ar o rasto da abundância e no tempo o fedor da resignação.
Mia pensa que vida é aquela.
O vizinho do lado não tem nada a que possa chamar seu, o da rua de cima também não, o do outro lado da costa também não, mas partilhar é verbo mentiroso e ambição calada com fúria desmedida.
Mia pensa que vida é aquela.
Na cidade grande o aroma é de pobreza, a paisagem de ruínas e os afectos distorcidos pelas entranhas dos prédios velhos que acolhem famílias novas.
Mia pensa que vida é aquela.
Lá dentro os hotéis rebentam pelas costuras da última moda da Europa e da fartura dos produtos frescos trazidos pelo homem que só come arroz, tão maldito é o novo mundo.
Mia pensa que vida é aquela.
É verdade que a cidade pulsa tanto como pulsam os corações quando se pensa liberdade, palavra proibida repetida vezes sem conta de boca fechada.
Mia pensa que vida é aquela.
Da sua pequena casita avista todos os dias gente a voar e a navegar para longe e sente-se apertada numa grande prisão que há muito excedeu a lotação porque há muito que lhe encurralou a vontade.
Mia pensa que vida é aquela.

A sua janela tem grades porque noutros tempos os piratas eram impiedosos, agora ela pergunta-se muitas vezes - e nestes tempos, não são?
Mia pensa que vida é aquela.



Os desejos do corpo e do coração por novos horizontes calaram-se um dia.
Calam-se sempre.
Lá onde está, Mia é livre.
Mas continua a pensar por todos os que ficaram
"que puta de vida es esta?"

Em Cuba, o dia também vai chegar.
Moon





domingo, 24 de fevereiro de 2008

BOA SORTE DIEGO

Cheguei perto da hora do meio-dia com o calor dos trópicos a beliscar-me a pele e a fazer-me esquecer o Outono da minha latitude, ainda deslumbrada pela descoberta de uma terra de gente boa, tão diferente do desenho borrado das notícias que cá nos chegam. Cheguei depois de uma hora de mar, de um azul deserto que guardei e que ainda hoje tenho só para mim mesmo passados tantos anos. Mais uma longa caminhada e pronto, duas horas para avistar meia dúzia de cabanas, com telhados tristes de folha de palmeira, ou cento e vinte minutos pela promessa de um almoço divinal, lá onde Judas perdeu as botas e parece o fim do mundo.
As redes retemperadoras e a bebida refrescante previram na perfeição a chegada dos forasteiros, que de vez em quando aparecem lá na linha do horizonte, deixam os apetecidos reais e voltam para casa cheios de histórias para contar, que vão depois tirando dos sacos como sempre fizeram os viajantes do mundo, desde a noite dos tempos - esta é uma dessas histórias, tirada do saco de um grupo de quatro andarilhos de que tenho a sorte de fazer parte.
A imensidão de dunas a toda a volta da única casa de tijolo da aldeia deixava adivinhar duas coisas – a antevisão do que eu vinha à procura, os lençóis maranhenses também pomposamente chamados Grande Deserto dos Trópicos, e a vida agrilhoada de quem vive a muitas muitas horas de distância seja de um médico ou de uma padaria.
E o almoço foi indiscutivelmente delicioso, farto, servido pela dona da casa e por uma rapariga, jovem dos seus 20 e poucos anos, cor de especiaria e dentes branquíssimos, sorriso radiante, simpatia inesgotável, eficiência, olhos doces daqueles que convidam à conversa. E como os olhos convidaram, os sentidos obedeceram, fala puxa fala, e o estupor do almoço perdeu todo o sabor quando andando somente meia dúzia de passos para o lado, a fortuna se transformou em lição de vida.
A Jesus vivia numa daquelas cabanas que avistando-se ao longe não se querem por perto, juntamente com o marido, os três filhos, e a miséria. Desolação é palavra suave, descrever o casebre é impossível. E no meio da areia, em frente à casa, sob o sol tropical, má sorte ter tido uma paralisia cerebral em bebé, má sorte não falar antes emitir sons profundos e perturbantes, má sorte não andar mas arrastar-se sobre duas perninhas mortas, estava o Diego. O Diego a mostrar que entendia e sorvia tudo à sua volta. O Diego a pedir alguma coisa que só a mãe entendeu porque as mães entendem tudo, o Diego a pedir bolachas, a mãe a dizer que não havia bolachas nem havia nada, com o mesmo sorriso com que minutos atrás me tinha servido fartura à descrição. E com os mesmos olhos doces cheios de esperança porque semanas antes um italiano com muitas facilidades fixou o coração naquele cenário desolado e lhe prometeu vir buscá-los para tratar o menino e enganar para sempre a certeza de uma vida sem futuro. O Diego a querer ser feliz.
E eu, ali, naquele fim de mundo, a milhares de quilómetros de onde me encontro agora, onde deixei tudo o que podia e tinha comigo naquele dia - dinheiro, medicamentos e lágrimas – vivi em poucos minutos com uma mulher cor de canela uma história de esperança, com um menino pobre uma história de coragem, e com um homem rico uma história de amor.
Já passaram muitos anos e não sei como acabaram estas histórias, mas continuo teimosamente a acreditar na beleza dos gestos dos Homens. Também já andei muitas mais milhas, tive muitas mais coisas boas e coisas más, horas tristes e horas alegres, condição sine qua non a todos os vira mundos como nós. Mas em nenhum outro momento, em viagem alguma, voltei a sentir a vontade tão forte de ter uma varinha de condão para ser fada madrinha como naquele dia, lá longe, em terras do Ceará, num país tropical cheio de encantos mil.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

SAPATOS DE CRISTAL

La longe, do outro lado do mar, olhei para ti e pensei para mim na impossibilidade de sermos iguais por fora e na inevitabilidade de sermos iguais por dentro. A cor da tua pele é diferente da minha, mas o teu coração é vermelho igualzinho ao meu. Os teus olhos são tristes mas não espelham a tua esperança no futuro, tão viva como a minha. Andas perdido na rua e a tua escola tem telhado de palha, mas as letras que te enchem são as que juntas para conversar comigo e eu entendo-as. Queres uns braços que te apertem e uma boca que te faça cócegas e um corpo que te aqueça, porque é isso que nos mantém acordados todos os dias e sonhadores todas as noites.
Menino dos trópicos, de olhos bonitos, barriga grande e pés descalços, olha para mim que eu torço por ti. Atira por cima do ombro as notas feias e compõe uma música bonita que nos embale aos dois. Agarra-me com unhas e dentes e não me deixes cair porque eu tenho muito medo das alturas.
E olha, nao te importes por nao teres chinelas, há quem com sapatos de cristal nunca tenha entrado pela minha vida adentro como tu. E se és importante para alguém, ainda que muito longe e noutro mundo, já ganhaste e fizeste ganhar.

tua,
moon

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

PARA TI, ONDE ESTIVERES

Como esquecer-me de ti, se ainda ontem te chorei, hoje sinto a tua falta, e amanhã te procurarei à descarada?
Como esquecer-me de ti, se deixaste um buraco no peito do meu mundo, logo a mim?
Queria que voltasses agora para me cantares uma canção de embalar, para me aconchegares outra vez a roupa da cama nas noites frias da minha vida, para eu te poder ver e dizer-te com letras grandes e palavras gordas que gosto de ti.
Moravas no meio de uma rua alegre com a tua tristeza, rodeada de gente com a tua solidão.
Foste apanhada pelo medo das coisas más logo muito cedo e os teus monstros nunca sairam debaixo da cama onde tantas e tantas vezes dormi encostada a ti. E olha, tenho saudades. Revejo-te sempre de preto, por dentro e por fora, e encanto-me por pensar que muitas das cores da tua vida foram pintadas por mim. Lembro-me do teu adeus à porta, de onde nunca saías até eu desaparecer.Lembro-me das comidas que fazias, que eram as que eu gostava. Sabes, ontem a Maria falou de ti. E hoje enchi-me de coragem para te escrever. E sejas pó, alma ou corpo, neste preciso momento, por detrás da cortina das lágrimas, deixa-me dizer-te que preciso de ti avó.

Moon

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

NESTA RUA, CABEÇA DE LUA

Naquele lugar lá longe viveste tu por aqueles dias, à procura de todos, sem encontrar nenhum.
Daquele lugar para lá da estrada bem conhecida voltaste vazio, por não teres ultimamente conseguido muito mais do que isso.

A vida é um bailado de luz e sombra que o menino vai dançando com bailarinas nos braços e palavras pela garganta abaixo. Não se deixa ver fundo porque parece que já deixou, e deixando deixou-se tocar. Foge e não toca. Ou toca e foge. Dói menos assim.
O menino tem a cabeça na lua, o corpo na terra, alma por cima. Tem medo das horas sérias e dos minutos compridos e esconde-se no tempo dos outros.
O menino caminha numa corda bamba de angústias sobre uma rede de fios de esperança que ele próprio tece à espera que amanhã seja muito melhor.
Encontra-te menino, porque só encontrando-te podes ser feliz. Encontra-te por aí, na esquina das coisas boas, na praça da coragem, no caminho do desabafo, na encruzilhada das palavras que só tu podes pôr no caixote do lixo. A merda enterrada para sempre.

Encontra-te também por aqui, nesta rua cheia onde cabes tu, e onde cabemos todos.


Menino, eu não disse que ainda te havia de ver por aqui?

Moon.

quinta-feira, 1 de março de 2007

APRESENTO-VOS A MIMI

A Mimi cresceu rodeada de gente.
Desde cedo conheceu o movimento das ruas, as cores das casas, e sobretudo a agitação do mercado, onde ía todas as terças e sábados perder-se na atmosfera de cheiros e sabores de que nunca na vida se esqueceu. Comprava queijos porque gostava do cheiro, castanhas porque as adorava assadas e algodão doce porque não há feira ou mercado sem ele. Vagueava pelas tendas de roupas e sapatos, de quinquilharias e produtos alimentares, mas a sua grande paixão eram os pássaros, a que nunca resistia. Não podia ouvir o seu chilrear aflito nem vê-los amontoados em gaiolas. Comprava até o dinheiro chegar e em todos os dias de mercado trazia para casa passarinhos pintados de verde, amarelo ou azul, que punha numa gaiola gingantesca que a seu pedido alguém tinha feito no meio do quintal de casa. Achava a Mimi que à solta não sobreviveriam e que pelo menos ali não lhes faltava espaço para voar.
Como se calcula, esta boa acção praticada à razão de dois dias por semana inviabilizou rapidamente a casa dos pássaros, que depressa se encheu e deixou de ter capacidade para albergar tantas aves desprotegidas. A Mimi percebeu que tinha que passar a evitar a rua do mercado onde se praticava aquele comércio atroz e conformou-se com a ideia que se não podia salvar a passarada toda pelo menos faria alguma coisa por uma parte dela. Por isso todas as manhãs se levantava cedo e ía alimenta-los e dar-lhes água, primeiro com o único e louvável objectivo de confortá-los e mimá-los e depois também bastante por desespero de causa pois a chilreada era tanta assim que o sol nascia que se ouvia em toda a vila e as queixas eram aos montes.
Foi a sua primeira lição de vida. O que antes era uma alegria tinha-se tranformado num problema e, pior, tinha que ser ela a resolvê-lo.
Viveu dias e noites de grande angústia sem saber o que fazer com os seus amiguinhos coloridos e inconvenientes, e por fim lá se resolveu. Pediu ajuda para transportar a enorme gaiola até ao campo e aí, enchendo-se de coragem e dominando a tristeza de se ver com muitas dezenas de amigos a menos, abriu-lhes a porta. E o que aconteceu a seguir deve ter sido indiscrítivel porque até hoje se fala disso na vila. A alegria dos pássaros por se verem livres foi tão grande que o barulho da chilreada se tornou ensurdecedor, e eram tantos e tão coloridos que o céu se tornou numa imensa paleta de tintas que pode ser vista em todas as terras vizinhas. As pessoas ficaram mudas de espanto e de susto e por momentos pensou-se que era o fim do mundo. Durou minutos até eles se calarem e juntos, formando uma enorme nuvem de cores, se afastarem e irem à sua vida, livres para sempre.
A Mimi, triste, voltou para casa consolada com a ideia de que os seus amiguinhos estavam livres, e aliviada por nao ter mais que se levantar de madrugada para os alimentar e assim acalmar os ânimos da população mal dormida.

Próximo post: Mistérios da estrada que passa lá por trás do bairro.